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terça-feira, 15 de março de 2011

Jorge Amado e Eu


Em 60 anos de vida, fiquei órfão três vezes. A primeira foi quando Glauber Rocha, nem dois anos mais velho do que eu, morreu e me deixou desarvorado em Portugal, onde convivêramos em seus últimos dias. A segunda foi quando meu pai, Manoel Ribeiro, morreu e perdi de vez o tapinha nas costas dado por ele, nas raras ocasiões em que sua severidade lhe permitia agradar-se de algo que eu tinha feito. A terceira vez foi na noite de segunda-feira passada, quando morreu Jorge Amado e estou aqui, desnorteado novamente, agora que nunca mais vou poder ouvir seu bom humor, às vezes brincalhonamente irônico, manifestar-se nas muitas lições que me deu, na paciência e generosidade que sempre foram marca de seu temperamento.

Com quem vou conversar agora, na mais desarmada confiança que se pode ter, a quem mais vou contar minhas dúvidas e hesitações, de quem mais vou ouvir macetes e percalços desta vida de contador de histórias, quem mais me olhará — como olhava para todos nós, os jovens de quem, sem o menor paternalismo, mas como uma espécie de irmão mais velho, se tornou amigo e infatigável incentivador — com o orgulho ancho e benevolente de um técnico de futebol, diante da equipe que conseguiu formar? Para quem vou telefonar e pedir juízo, conselhos e sensatez? Por que se vão todas as minhas referências, me deixando cada vez mais só neste mundo, onde tudo indica que ficarei mais um tempo?

Talvez pareça presunçoso eu querer falar no universo que foi e é Jorge Amado através de meu ponto de vista. Mas para falar na persona literária, política e social dele, haverá quem fale melhor do que eu. De especial no que tenho a dizer existe somente a amizade e o amor fraterno que nos uniu durante uns 40 anos e é disso que posso falar. Posso testemunhar sobre a grandeza e a generosidade de seu gênio. Pois o chamo de gênio, no sentido que esta palavra tinha antigamente, antes de enfraquecer-se pelo uso descomedido.

Quem mais, senão um gênio, teria criado toda uma nação, teria dado forma, expressão e identidade a uma terra e uma cultura como a Bahia, assim legando aos baianos e aos brasileiros em geral, pois a Bahia pertence a todos os brasileiros, um patrimônio inestimável? A Bahia não pode ser compreendida — e, por via de conseqüência, o Brasil não pode ser inteiramente compreendido — sem Jorge Amado e Dorival Caymmi, esse outro gênio de quem só podemos também ter orgulho. Dois fortíssimos pilares da cultura nacional residem na obra deles e, agora que eles já abriram caminho, tudo parece fácil e até óbvio. É como na história de um ignorante que foi assistir a uma apresentação de “Hamlet” e depois comentou, decepcionado, que não passava de um apanhado de lugares-comuns: ser ou não ser, eis a questão; o resto é silêncio; há algo de podre no Reino da Dinamarca; há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe sua filosofia; e assim por diante. A Bahia desabrochou sob as mãos de artesãos amorosos e de insuperável sensibilidade, como Jorge e Caymmi. Pela primeira vez os negros, os pobres, os humildes, os marginalizados foram trazidos maciçamente, através de uma singularíssima empatia e uma riqueza narrativa incomparável, para o proscênio das nossas artes — e nunca mais a cultura nacional foi a mesma.

Nós aprendemos a nos menosprezar e vivemos treinando isso o tempo todo. Há quem não veja, quem não consiga quase glandularmente não ver, que Jorge Amado não foi um dos mais importantes escritores do Brasil, mas um dos maiores autores do século, sob todos os títulos, a começar pelo fato de que, para o mundo culto e, de certa forma, para o grande público de muitos países, praticamente encarnava o Brasil e bem poucos escritores podem aspirar a esse tipo de galardão. Ele, com altivez e dignidade, nos representava, era como um símbolo da afirmação nacional, era o nosso escritor.

Mas isso tudo é e será visto, pois o patrimônio que Jorge nos deixou é perene e indelével, entrou na nossa alma, e a perspectiva histórica ainda lhe dará o relevo que efetivamente merece e que alguns ainda lhe negam, estreitando e tentando apequenar a estatura indestrutível de sua obra e sua vida, cujos ideais o levaram a quatro prisões, ao exílio e à incompreensão. Sempre disse que seu personagem era o povo e por isso, com mal-disfarçado desdém, há quem o chame de populista. Mas vá lá que fosse, ele mesmo não dava nenhuma pelota para isso, até gostava. Eu estava na Bahia para sua despedida e vi o povo nas ruas, aplaudindo seu escritor com emoção. Muitos entre eles nem lêem, mas todos sabem que perderam algo de muito importante, que felizmente viverá sempre na obra que aí está.

Acabei me alongando mais do que queria, em seara que outros explorarão muito melhor do que eu. Queria mesmo falar sobre aquilo em que tenho autoridade: nossa amizade. Cacá Diegues disse à imprensa que nós todos somos produto do que ele inventou, queremos ser o projeto que sua obra representa para o Brasil. No avião em que voltávamos da Bahia, Caetano Veloso me disse a mesma coisa. Heródoto escreveu que o Egito é um dom do Nilo e nós somos um dom de Jorge. De minha parte, eu sei bem. Foi ele quem primeiro acreditou em mim, desde os meus 17 anos, foi ele que, me vendo registrar-me num hotel, olhou o item onde eu declarava timidamente que minha profissão era jornalista, pegou a ficha, rasgou-a e disse:

— Jornalista é muito bom, mas não é o que você é. Bote aí “escritor”, você é escritor.

Foi ele que me acompanhou durante todo esse tempo, enchendo minha bola onde quer que chegasse ou a que veículo de imprensa falasse. Foi ele quem me chamou a atenção, sempre carinhosamente, para meus erros, minhas decisões mal pensadas, até para meu descuido com a saúde. A sabedoria e o bem-querer com que sempre me orientou não me deixarão nunca, sou um privilegiado maiúsculo, com essa convivência acima de tudo enriquecedora e enobrecedora. Não posso avaliar tudo o que devo a Jorge, direta e indiretamente. Só sei que tenho saudades dele e das muitas horas que passamos juntos e sei que vou atravessar o resto da vida com estas saudades.


Texto publicado por João Ubaldo Ribeiro no jornal "O Globo" em 12/08/2001 – seis dias após a morte de Jorge Amado.

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