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quinta-feira, 31 de março de 2011

Sobre a morte e o morrer

O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de
um ser humano? O que e quem a define?


Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...”

Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”

Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.

Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".

Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.

Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.

Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?

Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.

Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".

Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.

Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.


Rubem Alves – Folha de São Paulo – 12/10/03.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Parábola da felicidade

Após uma caminhada exaustiva pelo campo, os quatro amigos sentaram à beira do caminho, embaixo da sombra da velha jaqueira. Era ela a única árvore numa plantação de melancias. Era como se representasse com dignidade a espécie da árvore, num planeta onde alguns humanos não importam em destruí-las em nome de um progresso duvidoso. Aquele era o local preferido dos rapazes: jacas e melancias à vontade! Aquele dia era especial: terminaram o curso e, provavelmente, seria a última vez que caminhariam juntos. Embora nem admitissem, estavam conscientes do momento e não perceberam o estranho brilho pairando sobre a copa da jaqueira.

Não fiquem tristes, nós nos veremos novamente....

Os amigos se entreolharam, espantados.

- Quem disse isso? - perguntou Eduardo, intrigado.

A voz era suave e nem parecida com nenhum deles.

- Ouvi! - confirmou Pedro. - Parece que veio lá de cima.

- Também escutei - disse Silas.

- Estranho. - comentou Antônio. Acho que pegamos sol demais pelo caminho.

- Ei! - exclamou Silas. Vocês estão notando uma luz estranha no alto da árvore?

Todos olharam para cima.

- É verdade. Vai ver é um disco voador!

Escutaram a voz novamente:

- Não é brincadeira! Eu posso atender um pedido de cada um de vocês para que sejam felizes....

O susto foi grande. Uma árvore falante! Árvores não falam! Ou falam? O conhecimento científico, impõe-se de maneira preponderante, de tal forma que acabamos por crer apenas no que conseguimos pesar, medir, reduzir, ao mesmo tempo em que passamos a recusar tudo o que não se enquadre nesses experimentos científicos.

- Vo.... Você é um tipo de árvore da felicidade? - perguntou Antônio.

- Não importa agora. Façam logo seus pedidos...

- Quero ser o homem mais rico do mundo - falou Antônio, superando os instantes de incredulidade. - Ninguém consegue ser feliz sem dinheiro.

Silas pediu:

- Quero ser o homem mais amado do mundo, já que dinheiro não traz felicidade.

Eduardo falou:

- Eu quero ser muito inteligente! E também jovem! Mocidade e inteligência são, sem dúvida, as maiores felicidades.

Pedro pediu:

- Eu quero ser o homem mais famoso, com glória.

E todos riram. Rapidamente a copa da jaqueira mudou de cor, soltou estranho zunido e, por fim, subiu velozmente para o céu, deixando um rastro luminoso e os quatro amigos boquiabertos.

O TEMPO PASSOU..... Cada um seguiu seu caminho. Conforme pediram, seus desejos foram realizados, embora não tivessem conseguido a tão ansiada felicidade.....

Antônio tornou-se o homem mais rico, graças a uma estranha sorte no mundo dos negócios. Acumulara fortuna, mas a riqueza só lhe trouxe problemas. Nunca tinha certeza se as pessoas que conviviam ao seu redor estavam interessadas nele ou na sua fortuna, e por isso ia se tornando taciturno, entediado, egoísta, isolando-se de todos. Só saía protegido por guarda-costas, por medo de seqüestros.

Silas, por sua vez, era muito amado. Ainda que fizesse as piores maldades, seus fanáticos admiradores sorriam para ele e lhe adoravam. Mas sentia-se muito só. Não fazia diferença como tratava as pessoas: o resultado era o mesmo. Tinha muitas mulheres, mas não amava nenhuma. O amor das pessoas, sem que fizesse nada para conquistá-lo, tornou-o cruel e perverso. Sentia prazer em maltratar as pessoas.

Eduardo permanecia jovem e inteligente. Era requisitado para palestras pelo mundo todo. Governantes solicitavam sua sabedoria. Mas era infeliz e solitário. Era alvo constante da inveja das pessoas. Coisas simples como sair à rua ou ter amigos, era impossível agora. Vivia recluso, por evitar os jornalistas e a milhares de convites para apresentações em público.

Antônio, Silas e Pedro viam a morte como libertadora de tanta infelicidade e frustração. Para Eduardo, sempre jovem, pensava ele mesmo dar fim a sua vida infeliz.

1990.... 1996..... 2000.... 2003.... 2008...... Embora nunca mais tivessem se encontrado depois daquele dia, os quatro mantinham o hábito de olhar o céu em noites estreladas, à procura de um estranho brilho esverdeado. Um dia, os quatro largaram tudo e fugiram. Viram-se novamente no local da velha jaqueira.

- Fomos enganados. Mas o que podemos fazer agora? E choraram, abraçados um ao outro.

- Foram vocês que escolheram assim!

- A voz! Maldita! Maldita! Você nos enganou com sua conversa de felicidade! - esbravejou Pedro.

- Vocês se enganaram. Todos sempre se enganam, quando acham que para ser feliz é preciso alguma condição como dinheiro, inteligência, mocidade, amor ou glória....

- Pelo amor de Deus! Filosofia barata não! Já estou farto de conselhos - falou Antônio.

- Você prometeu felicidade, mas hoje, olhe para nós: somos os homens mais infelizes do mundo!

- Vocês quiseram ser felizes. Fizeram seus pedidos e foram atendidos. Mas esqueceram que a FELICIDADE NÃO PODE SER POSSUÍDA... TEM QUE SER CONQUISTADA, ASSIM COMO O AMOR E A LIBERDADE. Cada pessoa sobre a Terra é um ser único e imprevisível. Não existem fórmulas ou soluções que sirvam para todos. Cada um precisa escolher o seu próprio caminho e o seu jeito de caminhar! Vocês terão uma nova oportunidade...

- E como será essa nova oportunidade? - perguntou Pedro.

Mas não ouviram resposta. De novo o rastro prateado confundiu-se com o brilho das estrelas.

- Já é noite! - surpreendeu-se Silas. - Mas como? Será que cochilamos os quatro ao mesmo tempo? Eram novamente jovens, ainda cansados pela caminhada, a última que faziam como internos do colégio.

- Engraçado... Aconteceu alguma coisa que não consigo me lembrar..... - disse Antônio. Os quatro levantaram-se e já iam pôr-se a caminho, quando Antônio percebeu um pedaço de papel esverdeado pregado na jaqueira.

- Um bilhete! E é para nós! - verificou Silas. Ninguém sabia quem tinha deixado aquilo.

AMIGOS QUERIDOS:

Ninguém precisa de riqueza, poder, fama, mocidade, inteligência, ou qualquer outra coisa para ser feliz. A felicidade não pode ser comprada. Ela é fruto de nosso compromisso com a paz, a justiça, a alegria, o equilíbrio entre os seres do planeta, pois não é só a nossa felicidade que importa, mas a dos que virão depois de nós e de nossos filhos. Ser feliz é isso: aproveitar intensamente este presente cotidiano - A VIDA - vivê-la plenamente e permitir que os outros também façam o mesmo. Afinal, vivemos um dia de cada vez e quem deixa seu tempo presente preocupado com o que ainda não aconteceu ou angustiado pelo que já passou, perde a oportunidade de ser feliz AQUI E AGORA e, um dia, sem que se saiba quando, será tarde para voltar atrás. No caminho de volta, entre milhares de estrelas, havia agora um brilho esverdeado, cuja luz parecia ter compartilhado daquele estranho acontecimento...


Vilmar Berna

O PREÇO DA PREGUIÇA


Um velho sábio tentava ensinar ao seu povo como trabalhar e ser cauteloso ao mesmo tempo. Para ele, nada de bom merece uma nação, cujo povo reclama passivamente esperando que os outros resolvam seus problemas.

Certa noite, enquanto todos dormiam, ele pôs uma enorme pedra na estrada, impedindo a passagem. Em seguida, escondeu-se e ficou observando tudo de longe. Primeiro apareceu um fazendeiro com uma carroça carregada de sementes. Todavia, ele se desviou da pedra e saiu praguejando: “Por que esses preguiçosos não mandam retirar essa pedra da estrada”.

Logo depois, surgiu um jovem soldado que tropeçou na pedra. Irritou-se, praguejou, reclamou, mas nada fez para desobstruir o caminho. E assim, todos os outros que passavam por lá resmungavam, reclamavam, mas não faziam absolutamente nada para retirar aquela pedra da estrada.

No fim de tarde, apareceu a filha do moleiro que, embora muito cansada, resolveu tentar remover sozinha a grande pedra. Empurrou, empurrou, puxou para cá, puxou para lá e depois de tanto insistir conseguiu livrar o caminho, colocando a pedra na lateral da estrada. Contudo, para sua surpresa, encontrou uma caixa debaixo da pedra. Ergueu-a. Era pesada, pois estava cheia de alguma coisa. Na sua tampa havia os seguintes dizeres: “Esta caixa pertence a quem retirar a pedra do caminho”.

Curiosa, abriu a caixa e descobriu que estava cheia de ouro. Ficou muito feliz e retornou para sua casa. Quando o fazendeiro e o soldado souberam do ocorrido, correram para o local e revolveram o pó da estrada com os pés, na esperança de encontrar ainda algum pedaço de ouro. Mas, nada acharam. Nesse instante, o sábio caminhou até eles e disse:

– Meus amigos... Com freqüência encontramos obstáculos e fardos no nosso caminho. Podemos reclamar em alto e bom som enquanto nos desviamos deles se assim preferirmos, ou podemos erguê-los e descobrir o que eles significam. A DECEPÇÃO É NORMALMENTE O PREÇO DA PREGUIÇA.

Texto adaptado do livro As mais belas parábolas de todos os tempos – de Alexandre Rangel.

domingo, 20 de março de 2011

A decisão – Charles Chaplin



Hoje levantei cedo pensando no que tenho a fazer antes que o relógio marque meia noite. É minha função escolher que tipo de dia vou ter hoje. Posso reclamar porque está chovendo ou agradecer às águas por lavarem a poluição. Posso ficar triste por não ter dinheiro ou me sentir encorajado para administrar minhas finanças, evitando o desperdício. Posso reclamar sobre minha saúde ou dar graças por estar vivo. Posso me queixar dos meus pais por não terem me dado tudo o que eu queria ou posso ser grato por ter nascido. Posso reclamar por ter que ir trabalhar ou agradecer por ter trabalho. Posso sentir tédio com o trabalho doméstico ou agradecer a Deus. Posso lamentar decepções com amigos ou me entusiasmar com a possibilidade de fazer novas amizades. Se as coisas não saíram como planejei posso ficar feliz por ter hoje para recomeçar. O dia está na minha frente esperando para ser o que eu quiser. E aqui estou eu, o escultor que pode dar forma. Tudo depende só de mim.

O PODER DO AUTOCONTROLE


Conta a lenda, que um velho sábio, tido como mestre da paciência, era capaz de derrotar qualquer adversário. Certa tarde um homem conhecido por sua total falta de escrúpulos apareceu com a intenção de desafiar o mestre. E o homem não poupou insultos....

Chegou até a jogar algumas pedras em direção ao sábio, cuspiu e gritou todos os tipos de ofensas. Durante horas ele fez de tudo para provocá-lo, mas o sábio permaneceu impassível. No final da tarde, já exausto e sentindo-se humilhado, o homem deu-se por vencido e foi embora...

Impressionados, os alunos perguntaram ao mestre como ele pudera suportar tanta indignidade. Aí o mestre perguntou:

- Se alguém chega até você com um presente e você não o aceita, a quem pertence o presente?

- A quem tentou entregá-lo. Respondeu um dos discípulos.

- O mesmo vale para a inveja, a raiva e os insultos. Quando não são aceitos, continuam pertencendo a quem os carregava!

Aquele que domina os outros é forte. Aquele que domina a si mesmo é poderoso. Lao Tsé

terça-feira, 15 de março de 2011

ANTIDEPRESSIVO (José Felice Deminco)


Jorge Amado e Eu


Em 60 anos de vida, fiquei órfão três vezes. A primeira foi quando Glauber Rocha, nem dois anos mais velho do que eu, morreu e me deixou desarvorado em Portugal, onde convivêramos em seus últimos dias. A segunda foi quando meu pai, Manoel Ribeiro, morreu e perdi de vez o tapinha nas costas dado por ele, nas raras ocasiões em que sua severidade lhe permitia agradar-se de algo que eu tinha feito. A terceira vez foi na noite de segunda-feira passada, quando morreu Jorge Amado e estou aqui, desnorteado novamente, agora que nunca mais vou poder ouvir seu bom humor, às vezes brincalhonamente irônico, manifestar-se nas muitas lições que me deu, na paciência e generosidade que sempre foram marca de seu temperamento.

Com quem vou conversar agora, na mais desarmada confiança que se pode ter, a quem mais vou contar minhas dúvidas e hesitações, de quem mais vou ouvir macetes e percalços desta vida de contador de histórias, quem mais me olhará — como olhava para todos nós, os jovens de quem, sem o menor paternalismo, mas como uma espécie de irmão mais velho, se tornou amigo e infatigável incentivador — com o orgulho ancho e benevolente de um técnico de futebol, diante da equipe que conseguiu formar? Para quem vou telefonar e pedir juízo, conselhos e sensatez? Por que se vão todas as minhas referências, me deixando cada vez mais só neste mundo, onde tudo indica que ficarei mais um tempo?

Talvez pareça presunçoso eu querer falar no universo que foi e é Jorge Amado através de meu ponto de vista. Mas para falar na persona literária, política e social dele, haverá quem fale melhor do que eu. De especial no que tenho a dizer existe somente a amizade e o amor fraterno que nos uniu durante uns 40 anos e é disso que posso falar. Posso testemunhar sobre a grandeza e a generosidade de seu gênio. Pois o chamo de gênio, no sentido que esta palavra tinha antigamente, antes de enfraquecer-se pelo uso descomedido.

Quem mais, senão um gênio, teria criado toda uma nação, teria dado forma, expressão e identidade a uma terra e uma cultura como a Bahia, assim legando aos baianos e aos brasileiros em geral, pois a Bahia pertence a todos os brasileiros, um patrimônio inestimável? A Bahia não pode ser compreendida — e, por via de conseqüência, o Brasil não pode ser inteiramente compreendido — sem Jorge Amado e Dorival Caymmi, esse outro gênio de quem só podemos também ter orgulho. Dois fortíssimos pilares da cultura nacional residem na obra deles e, agora que eles já abriram caminho, tudo parece fácil e até óbvio. É como na história de um ignorante que foi assistir a uma apresentação de “Hamlet” e depois comentou, decepcionado, que não passava de um apanhado de lugares-comuns: ser ou não ser, eis a questão; o resto é silêncio; há algo de podre no Reino da Dinamarca; há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe sua filosofia; e assim por diante. A Bahia desabrochou sob as mãos de artesãos amorosos e de insuperável sensibilidade, como Jorge e Caymmi. Pela primeira vez os negros, os pobres, os humildes, os marginalizados foram trazidos maciçamente, através de uma singularíssima empatia e uma riqueza narrativa incomparável, para o proscênio das nossas artes — e nunca mais a cultura nacional foi a mesma.

Nós aprendemos a nos menosprezar e vivemos treinando isso o tempo todo. Há quem não veja, quem não consiga quase glandularmente não ver, que Jorge Amado não foi um dos mais importantes escritores do Brasil, mas um dos maiores autores do século, sob todos os títulos, a começar pelo fato de que, para o mundo culto e, de certa forma, para o grande público de muitos países, praticamente encarnava o Brasil e bem poucos escritores podem aspirar a esse tipo de galardão. Ele, com altivez e dignidade, nos representava, era como um símbolo da afirmação nacional, era o nosso escritor.

Mas isso tudo é e será visto, pois o patrimônio que Jorge nos deixou é perene e indelével, entrou na nossa alma, e a perspectiva histórica ainda lhe dará o relevo que efetivamente merece e que alguns ainda lhe negam, estreitando e tentando apequenar a estatura indestrutível de sua obra e sua vida, cujos ideais o levaram a quatro prisões, ao exílio e à incompreensão. Sempre disse que seu personagem era o povo e por isso, com mal-disfarçado desdém, há quem o chame de populista. Mas vá lá que fosse, ele mesmo não dava nenhuma pelota para isso, até gostava. Eu estava na Bahia para sua despedida e vi o povo nas ruas, aplaudindo seu escritor com emoção. Muitos entre eles nem lêem, mas todos sabem que perderam algo de muito importante, que felizmente viverá sempre na obra que aí está.

Acabei me alongando mais do que queria, em seara que outros explorarão muito melhor do que eu. Queria mesmo falar sobre aquilo em que tenho autoridade: nossa amizade. Cacá Diegues disse à imprensa que nós todos somos produto do que ele inventou, queremos ser o projeto que sua obra representa para o Brasil. No avião em que voltávamos da Bahia, Caetano Veloso me disse a mesma coisa. Heródoto escreveu que o Egito é um dom do Nilo e nós somos um dom de Jorge. De minha parte, eu sei bem. Foi ele quem primeiro acreditou em mim, desde os meus 17 anos, foi ele que, me vendo registrar-me num hotel, olhou o item onde eu declarava timidamente que minha profissão era jornalista, pegou a ficha, rasgou-a e disse:

— Jornalista é muito bom, mas não é o que você é. Bote aí “escritor”, você é escritor.

Foi ele que me acompanhou durante todo esse tempo, enchendo minha bola onde quer que chegasse ou a que veículo de imprensa falasse. Foi ele quem me chamou a atenção, sempre carinhosamente, para meus erros, minhas decisões mal pensadas, até para meu descuido com a saúde. A sabedoria e o bem-querer com que sempre me orientou não me deixarão nunca, sou um privilegiado maiúsculo, com essa convivência acima de tudo enriquecedora e enobrecedora. Não posso avaliar tudo o que devo a Jorge, direta e indiretamente. Só sei que tenho saudades dele e das muitas horas que passamos juntos e sei que vou atravessar o resto da vida com estas saudades.


Texto publicado por João Ubaldo Ribeiro no jornal "O Globo" em 12/08/2001 – seis dias após a morte de Jorge Amado.

quarta-feira, 2 de março de 2011

O VELHO ÍNDIO CHEROKEE



Certa noite, um velho índio Cherokee relatou ao seu neto sobre uma batalha que acontece dentro das pessoas. Ele disse:

– Meu neto, a batalha é entre dois lobos que existem dentro de todos nós. Um é mau: é a raiva, a inveja, o ciúme, a tristeza, o desgosto, a cobiça, a arrogância, a pena de si mesmo, a culpa, o ressentimento, a inferioridade, as mentiras, o orgulho falso, a superioridade e o ego. O outro é bom: é a alegria, a paz, a esperança, a serenidade, a humildade, a bondade, a benevolência, a empatia, a generosidade, a verdade, a compaixão, e a fé.

Confuso, o neto refletiu por alguns minutos e perguntou ao avô:

– E qual dos dois lobos vence?

O velho índio parou, fitou-lhe nos olhos e respondeu:

– Aquele que nós escolhermos alimentar mais.