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sábado, 27 de abril de 2013

O QUE É SER PSICÓLOGO?



Prefiro começar esta reflexão pela sua negativa. O que é não ser psicólogo? Costumo pensar que nossa prática sempre corre o perigo de tornar-se um dispositivo de controle de uma sociedade disciplinar. Muitas vezes a prática apresenta-se legitimamente como dispositivo de coerção e adaptação do ser humano a normas sociais estabelecidas, isso mina todas as possibilidades de emancipação e autonomia dos sujeitos como construtores de sua própria história e da história da coletividade. Não ser psicólogo é contribuir na manutenção de relações de poder instituídas, é reproduzir valores pequeno-burgueses de família, propriedade privada, (ausência de) direitos das minorias, valores sobre a sexualidade, etc. Não ser psicólogo é admitir que, por ter um diploma e algum conhecimento teórico, sabe mais sobre o outro do que ele mesmo jamais poderia saber. Não ser psicólogo é sentir-se em pleno direito de conduzir alguém por caminhos que ele não escolheu.
Não ser psicólogo também é sentir-se plenamente psicólogo, completo, sentir que não há mais nada para aprender, que o conhecimento e o tal “olhar psi” sobre o mundo nos coloca num lugar de superioridade, de quem detém a verdade sobre o mundo e sobre o ser humano. Não ser psicólogo é querer ser psicólogo o tempo todo, “psicologizando” nossas próprias relações e qualquer manifestação da subjetividade alheia. Não ser psicólogo é reduzir a arte à psicologia, a literatura à psicologia, a psicanálise à psicologia, a filosofia à psicologia, o churrasco à psicologia, e perder o que há de propriamente humano (fora do âmbito do “psicologizável”) na vida.
Para ser psicólogo é preciso, acima e antes de qualquer coisa, ser humano. É preciso ser capaz de sentir, de chorar, de se emocionar, é preciso sofrer. Sofrer, mas saber sofrer. É preciso saber que o sofrimento do outro não é meu, e nem “como se” fosse, mas é somente do outro. E o sofrimento é legítimo justamente por ser do outro. O sofrimento alheio pode causar em nós outros sentimentos, que só são possíveis por estarmos em relação. Muitas vezes nos esquecemos o que é estar em relação, e esquecemos “como” estar em relação. Aí entra a questão da técnica.
Mas como pensar na técnica se podemos não saber o que fazer? Ser psicólogo é, depois de ser humano, ter clareza da posição ética-política que ocupamos no mundo, em nossas relações pessoais e profissionais. Se tivermos clareza de nossos objetivos, de nossos horizontes, da direção a seguir, descobriremos e inventaremos maneiras de estabelecer e manejar as relações. Só depois da clareza da posição ética-política entra a questão da técnica. A técnica pela técnica, sem prestar-se a um objetivo, pode ser perigosa. É assim que muitos de nós caímos nas armadilhas que tentamos evitar.
Uma pergunta que sempre deve ecoar em todos os nossos sentidos é “para quê?”. Para que serve minha prática? A que e a quem minha atuação profissional está submetida? Que tipo de relação estabeleço quando atuo profissionalmente? As relações que estabeleço baseiam-se nas minhas carências e angústias ou na direção de minha posição ética e política? Sou levado a pensar se quando reclamamos da insuficiência de modelos teóricos, na verdade nos queixamos da falta de clareza de quem somos, de nossa posição no mundo, da direção da nossa construção. Queixamos-nos por não termos definido onde queremos chegar, qual nosso horizonte, o que queremos quando pensamos em atuar efetivamente como psicólogos. Não sabemos como realizar análises, como refletir sobre a realidade, como buscar saídas, como conceber intervenções. Sentimo-nos inseguros, atribuímos nossa insegurança a algo externo, a falta de teorias, sem darmo-nos conta de que não temos objetivos, e nossos objetivos não estão somente nos livros.
Recentemente pude presenciar uma cerimônia de colação de grau que incluía alunos de psicologia. A oração dizia “... que esses profissionais levem alegria aonde houver tristeza, paz onde houver discórdia...” e fiquei me perguntando se um psicólogo deve fazer isso mesmo. Devemos aniquilar conflitos e angústias ou trata-se de nosso conteúdo de trabalho, e somente a partir da angústia e do conflito podemos pensar em intervir como psicólogos? Há sentido em levar alegria e paz, nossa alegria e nossa paz, e esmagar o sofrimento alheio? Nossa oferta é a felicidade? Se for, qual o custo da felicidade? Chega-se à felicidade sem sofrimento?
Outra preocupação que deve nos acompanhar é a necessidade que temos de sermos amados. Precisamos ser bem recebidos e bem tratados em todos os espaços, sob o risco de não suportarmos nossa própria incapacidade de manejar situações de conflito. Qual a direção de nossa intervenção? Essa pergunta me arrisco a responder: tornar-nos desnecessários. A direção de nosso trabalho é promover e desenvolver a possibilidade de não mais sermos necessários, a possibilidade que cada um pode ter de cuidar de si mesmo. No trabalho institucional e de grupos, a direção é a mesma, promover processos de autogestão e autoanálise, ou seja, saber e agir sobre si próprios. Como fazer isso sem evidenciar conflitos, sem fazer emergir contradições e forças instituístes? Se mantivermos a paz e a felicidade, estaremos apenas mantendo relações de preenchimento de nossas próprias carências? Voltando ao início da reflexão, não seria esta uma forma de construir uma prática como dispositivo da sociedade disciplinar?

Criado por Marcos de Sá
Disponível em: http://markitoland.blogspot.com.br/2010/05/o-que-e-ser-psicologo.html