Prefiro começar esta
reflexão pela sua negativa. O que é não ser psicólogo? Costumo pensar que nossa
prática sempre corre o perigo de tornar-se um dispositivo de controle de uma
sociedade disciplinar. Muitas vezes a prática apresenta-se legitimamente como dispositivo
de coerção e adaptação do ser humano a normas sociais estabelecidas, isso mina
todas as possibilidades de emancipação e autonomia dos sujeitos como
construtores de sua própria história e da história da coletividade. Não ser
psicólogo é contribuir na manutenção de relações de poder instituídas, é
reproduzir valores pequeno-burgueses de família, propriedade privada, (ausência
de) direitos das minorias, valores sobre a sexualidade, etc. Não ser psicólogo
é admitir que, por ter um diploma e algum conhecimento teórico, sabe mais sobre
o outro do que ele mesmo jamais poderia saber. Não ser psicólogo é sentir-se em
pleno direito de conduzir alguém por caminhos que ele não escolheu.
Não ser psicólogo também é
sentir-se plenamente psicólogo, completo, sentir que não há mais nada para
aprender, que o conhecimento e o tal “olhar psi” sobre o mundo nos coloca num
lugar de superioridade, de quem detém a verdade sobre o mundo e sobre o ser
humano. Não ser psicólogo é querer ser psicólogo o tempo todo, “psicologizando”
nossas próprias relações e qualquer manifestação da subjetividade alheia. Não
ser psicólogo é reduzir a arte à psicologia, a literatura à psicologia, a
psicanálise à psicologia, a filosofia à psicologia, o churrasco à psicologia, e
perder o que há de propriamente humano (fora do âmbito do “psicologizável”) na
vida.
Para ser psicólogo é
preciso, acima e antes de qualquer coisa, ser humano. É preciso ser capaz de
sentir, de chorar, de se emocionar, é preciso sofrer. Sofrer, mas saber sofrer.
É preciso saber que o sofrimento do outro não é meu, e nem “como se” fosse, mas
é somente do outro. E o sofrimento é legítimo justamente por ser do outro. O
sofrimento alheio pode causar em nós outros sentimentos, que só são possíveis
por estarmos em relação. Muitas vezes nos esquecemos o que é estar em relação,
e esquecemos “como” estar em relação. Aí entra a questão da técnica.
Mas como pensar na técnica
se podemos não saber o que fazer? Ser psicólogo é, depois de ser humano, ter
clareza da posição ética-política que ocupamos no mundo, em nossas relações
pessoais e profissionais. Se tivermos clareza de nossos objetivos, de nossos
horizontes, da direção a seguir, descobriremos e inventaremos maneiras de
estabelecer e manejar as relações. Só depois da clareza da posição ética-política
entra a questão da técnica. A técnica pela técnica, sem prestar-se a um
objetivo, pode ser perigosa. É assim que muitos de nós caímos nas armadilhas
que tentamos evitar.
Uma pergunta que sempre deve
ecoar em todos os nossos sentidos é “para quê?”. Para que serve minha prática?
A que e a quem minha atuação profissional está submetida? Que tipo de relação
estabeleço quando atuo profissionalmente? As relações que estabeleço baseiam-se
nas minhas carências e angústias ou na direção de minha posição ética e
política? Sou levado a pensar se quando reclamamos da insuficiência de modelos
teóricos, na verdade nos queixamos da falta de clareza de quem somos, de nossa
posição no mundo, da direção da nossa construção. Queixamos-nos por não termos
definido onde queremos chegar, qual nosso horizonte, o que queremos quando
pensamos em atuar efetivamente como psicólogos. Não sabemos como realizar
análises, como refletir sobre a realidade, como buscar saídas, como conceber
intervenções. Sentimo-nos inseguros, atribuímos nossa insegurança a algo
externo, a falta de teorias, sem darmo-nos conta de que não temos objetivos, e
nossos objetivos não estão somente nos livros.
Recentemente pude presenciar
uma cerimônia de colação de grau que incluía alunos de psicologia. A oração
dizia “... que esses profissionais levem alegria aonde houver tristeza, paz
onde houver discórdia...” e fiquei me perguntando se um psicólogo deve fazer
isso mesmo. Devemos aniquilar conflitos e angústias ou trata-se de nosso
conteúdo de trabalho, e somente a partir da angústia e do conflito podemos
pensar em intervir como psicólogos? Há sentido em levar alegria e paz, nossa
alegria e nossa paz, e esmagar o sofrimento alheio? Nossa oferta é a
felicidade? Se for, qual o custo da felicidade? Chega-se à felicidade sem
sofrimento?
Outra preocupação que deve
nos acompanhar é a necessidade que temos de sermos amados. Precisamos ser bem
recebidos e bem tratados em todos os espaços, sob o risco de não suportarmos
nossa própria incapacidade de manejar situações de conflito. Qual a direção de
nossa intervenção? Essa pergunta me arrisco a responder: tornar-nos
desnecessários. A direção de nosso trabalho é promover e desenvolver a
possibilidade de não mais sermos necessários, a possibilidade que cada um pode
ter de cuidar de si mesmo. No trabalho institucional e de grupos, a direção é a
mesma, promover processos de autogestão e autoanálise, ou seja, saber e agir
sobre si próprios. Como fazer isso sem evidenciar conflitos, sem fazer emergir
contradições e forças instituístes? Se mantivermos a paz e a felicidade,
estaremos apenas mantendo relações de preenchimento de nossas próprias
carências? Voltando ao início da reflexão, não seria esta uma forma de
construir uma prática como dispositivo da sociedade disciplinar?
Criado por
Marcos de Sá
Disponível em: http://markitoland.blogspot.com.br/2010/05/o-que-e-ser-psicologo.html
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