Sorriso,
diz-me aqui o dicionário, é o ato de sorrir. E sorrir [...] é rir sem fazer
ruído e executando contração muscular da boca e dos olhos. [...] O sorriso,
meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao
imaginar o autor do dicionário no ato de escrever o seu verbete, assim a frio,
como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as
pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a
sonhar um dicionário que desse precisamente, exatamente, o sentido das palavras
e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias,
elas nos envolvem.
Não há dois
sorrisos iguais. [...] temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu
contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irônico, o
sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e
(por que não?) o de quem morre.
E há muitos
mais. Mas nenhum deles é o Sorriso. O Sorriso (este, com maiúscula) vem sempre
de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com
as contrações musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por
um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frêmito interior que nasce
nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra
maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são
rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes
nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e
da nuvem, que foi que na terra se moveu? E, contudo era um sorriso.
Mas eu falava
de gente, de nós, que fazemos a aprendizagem do sorriso e dos sorrisos ao longo
da vida própria e das alheias. [...] A tudo isto é que eu chamo sabedoria.
[...] Dir-me-ão que não cabe tanto no sorriso. Eu digo que cabe. Soube-o a
noite passada, quando foi ele a única resposta para a insônia e para os
monstros do pesadelo nascido no sono onde o corpo acabou por deslizar, cansado
e aflito. Sorrir assim, mesmo sem olhos que nos recebam, é o verbo mais
transitivo de todas as gramáticas. Pessoal e rigorosamente transmissível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário