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terça-feira, 7 de setembro de 2010

A LITERATURA E O ATO DE ESCREVER (2). Por Marcus Deminco






Em alguns trechos do livro Bufo & Spallanzani (1986), o escritor e roteirista de cinema brasileiro, Rubem Fonseca também discorre sobre a literatura e o ato de escrever.


“O escritor é vítima de muitas maldições, mas a pior de todas é ter de ser lido. Pior ainda, ser comprado. Ter de conciliar sua independência com o processo de consumação. Kafka é bom porque não escrevia para ser lido. Mas por outro lado Shakespeare é bom porque escrevia de olho no shilling que cobrava de cada espectador. (V. Panofsky). Assim como o teatro não se salvará apenas com a coragem de escrever peças que ninguém queira assistir, a literatura também não se salvará apenas com a coragem de escrever outros Finnegans Wake.” (Rubem Fonseca, Bufo: 177).

“Aliás, escrever estava se tornando um tripalium, um sofrimento (de repente, imaginei-me sofrendo da síndrome de Virgínia Woolf e tremi de medo); o diabo é que para um escritor como eu, que precisava de dinheiro para sustentar o seu vício barregão, cada maldita palavra, um oh entre cem mil vocábulos, valia algum dinheiro. Escrever é cortar palavras, disse um escritor, que não devia ter amantes. Escrever é contar palavras, quanto mais melhor, disse outro que, como eu, precisava escrever um Bufo & Spallanzani a cada dois anos.” (ibdem, 188).

“Voltei para o quarto e tentei escrever Bufo & Spallanzani. Meu editor queria que eu escrevesse outro policial como Trápola. “Não inventa, por favor. Você tem leitores fiéis, dê a eles o que eles querem”, dizia o meu editor. A coisa mais difícil para o escritor é dar o que o leitor quer, pela razão muito simples de que o leitor não sabe o que quer, sabe o que não quer como todo mundo; e o que ele não quer, de fato, são coisas muito novas, diferentes do que está acostumado a consumir. Poder-se-ia dizer que, se o leitor sabe que não quer o novo, sabe, contrario sensu, que quer, sim, o velho, o conhecido, que lhe permite fruir, menos ansiosamente, o texto.” (ibdem, 170).


Em Escritores Criativos e Devaneio, pequeno ensaio de 1908, Freud lança as bases do que poderia se chamar de estética psicanalítica que se assenta na teoria, já esboçada por Aristóteles na Poética, de que há uma continuidade genética entre o brincar da criança e a criação artística.

"Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade (...) em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes (...) A irrealidade do mundo imaginativo do escritor tem, porém, conseqüências importantes para a técnica de sua arte, pois muita coisa que, se fosse real, não causaria prazer, pode proporcioná-lo como jogo de fantasia, e muitos excitamentos que em si são realmente penosos, podem tornar-se uma fonte de prazer para os ouvintes e espectadores na representação da obra de um escritor". (Freud – Escritores criativos e devaneio, p. 136).

Para o filósofo alemão, Friedrich Nietzsche só haveria um meio de se libertar do dever, da verdade transcendental, do niilista fundado por Platão, e este meio é a arte. Por meio dela, a vida se torna possível. A arte é um meio de contrapor à vontade de negação, à vontade que desvaloriza a vida em nome dos valores superiores. A vida como obra de arte passa a afirmar da potência criadora que, por sua vez, difere dos valores eternos do cristianismo ou da razão grega que paralisam a vida fixando o sentido sobre as formas de existir.

Não fugindo muito destes conceitos, Franz Kafka fez do peso do mundo a potência de sua escrita e encontrou sua libertação na literatura. Em seu diário, encontramos: “Como não sou outra coisa senão literatura e nada posso ser ou quero de diverso, meu emprego nunca pode me monopolizar, embora bem possa me arruinar”. A vida, segundo a literatura de Kafka, é uma eterna incompreensão e o mundo, uma insensatez.
“Escrever é um sono mais profundo do que a morte.” Franz Kafka

Os personagens de Kafka, acompanhando seu próprio sentimento diante da vida, reduziam-se, transformavam-se, decaíam e pereciam diante da doença que, segundo ele, era a própria condição humana. Kafka escrevia para se afastar da sombra. Para sentir menos peso. Para se libertar das neuroses. Para desviar o valor transcendental que fixa um sentido único sobre o acontecido fazendo do próprio passado um peso presente. Um sintoma.


Já para a escritora inglesa Virginia Woolf, a literatura era mais que um exercício intelectual refinado. Era uma máquina de ressuscitar. Escreveu livros para antecipar o que o mundo poderia ser caso os homens fossem mais sensíveis e generosos. A literatura foi sua salvação. Nela, guardou sua alma. A vida lhe doía demais, e só conseguiu expressá-la – só conseguia viver – quando escrevia. Quando escrevia e mentia. No dia em que perdeu esse poder de reparação, perdeu também o rumo. Sem palavras, como poderia amar? Depois de se afastar de Vita Sackville, sua grande paixão, desinteressou-se das mulheres e dos homens. Desistiu de amar, embora conservasse o marido, Leonard. Reduziu seu mundo aos cães, às flores e à casa.

A partir daí, as palavras a lançavam contra o mundo. A mesma máquina que ressuscitava os mortos um dia a matou. Até que, em 1941, talvez porque estivesse viva demais, e a ação da máquina a duplicasse em proporções absurdas, Virginia, não tolerando mais o peso do mundo e o desenrolar das horas, encheu os bolsos com duas grandes pedras e, aos 59 anos, com os passos lentos de quem leva uma criança para passear, entrou no Rio Ouse.


Mas, como a loucura poderia ser entendida sob as idéias relativas aos limites e seus jogos de exclusão? Foucault é bem claro quanto a este problema, quando salienta que:

“[...] a loucura é a linguagem excluída – aquela que, contra o código da língua, pronuncia palavras sem significação (os ‘insensatos’, os ‘imbecis’, os ‘dementes’), ou a linguagem que pronuncia palavras sacralizadas (os‘violentos’, os ‘furiosos’), ou ainda a que faz passar significações interditadas (os ‘libertinos’, os ‘obstinados’) [...] a loucura não manifesta nem relata o nascimento de uma obra [...]; ela designa a forma vazia de onde vem essa obra, quer dizer o lugar de onde ela não cessa de estar ausente, no qual jamais a encontramos porque jamais ela aí se encontrou.”

A literatura seria uma espécie de delírio: fazer delirar a língua. Esta é a natureza da literatura. A literatura é um convite a delirar com o seu espaço experiencial, através de um ato insolente que sabota os códigos da linguagem. Rememorando aquilo que, em Contre Sainte-Beuve (1954), Proust sublinhou com tanta propriedade sobre a experiência escrita, Deleuze apresenta a relação do escrever com este delírio:

“O problema do escrever: o escritor, como diz Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum modo estrangeira. Ela traz à luz novas potências gramaticais e sintáticas. Arrasta a língua para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar.”

Em “A literatura e a vida” – Deleuze (1997) relaciona o delírio observado no ato da escrita literária e o minorar a língua. Escrever literatura seria enlouquecer a tal ponto a linguagem fazendo com que ela subverta os códigos majoritários de seu uso. Por isso, ele diz, com Proust, que fazer literatura é escrever em uma língua estrangeira.

“O que a literatura produz na língua já aparece melhor: como diz Proust, ela traça aí precisamente uma espécie de língua estrangeira, que não é outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante.”

O romancista francês, Honoré de Balzac escrevia da meia-noite às oito da manhã, rodeado de candelabros e alimentando-se apenas de café. O escritor russo, Fiódor Dostoiévski, em 1844 pediu licença do exército com a idéia de ser exclusivamente dedicado à literatura, alugou uma casa em
São Petersburgo e dedicou-se à escrita de corpo e alma. No entanto, através da profundidade das análises psicológicas, das reflexões concernentes ao comportamento social e da busca incessante pelo seu estilo, Gustave Flaubert seria o maior expoente sobre o sofrível ato de escrever.

No início de novembro de 1851, ele escreve à amante, Louise Colet: "[...] Avanço penosamente no meu livro. Eu gasto bastante papel. Quantas rasuras! A frase demora a vir. Que diabo de estilo escolhi! Que desgraça os temas simples!". E conclui: "Eis-me comprometido por um ano pelo menos". Poucas semanas mais tarde, em fevereiro de 1852, percebe que previu mal o futuro: "[...] Isso está tomando proporções formidáveis em termos de tempo. Com certeza, eu ainda não terei terminado até o início do próximo inverno". E as dificuldades persistem: "Não escrevo mais que cinco ou seis páginas por semana".

Logo nos primeiros dias do mês de abril, Flaubert já se mostra inteiramente desesperado:

Estou mais cansado do que se empurrasse montanhas. Há momentos em que tenho vontade de chorar. É preciso uma vontade sobre-humana para escrever e eu sou apenas um homem. [...] Você sabe quantas páginas eu vou completar dentro de oito dias desde que voltei daí? Vinte. Vinte páginas em um mês e trabalhando pelo menos sete horas por dia; e qual o fim de tudo isto? O resultado? Amarguras, humilhações internas, nada em que se amparar a não ser a ferocidade de uma fantasia indomável.
Ainda no mês de abril, escrevendo à sua privilegiada interlocutora, ele revela sentimentos contraditórios:

Eu completei [...] vinte e cinco páginas (vinte e cinco páginas em seis semanas). Foram duras de conseguir. [...] Eu as trabalhei tanto, recopiei, mudei, remanejei, que no momento não vejo mais nada. [...] Levo uma vida áspera, deserta de qualquer alegria exterior e onde não tenho nada em que me apoiar a não ser uma espécie de raiva permanente, que às vezes chora de impotência, mas que é contínua. Eu gosto do meu trabalho com um amor frenético e pervertido, como um asceta do cilício que lhe arranha o ventre. Às vezes, quando eu me encontro vazio, quando a expressão se furta, quando, depois de ter garatujado longas páginas, descubro que não fiz nem uma frase, caio no meu divã e fico ali paralisado num pântano interior de tédio.
Eu me odeio e me acuso por essa demência de orgulho que me faz arquejar atrás da quimera. Um quarto de hora depois, tudo mudou; meu coração bate de alegria. Na última quarta-feira, eu fui obrigado a me levantar para apanhar meu lenço de bolso; é que as lágrimas corriam sobre o meu rosto. Eu me enterneci escrevendo, eu gozava, deliciosamente, da emoção de minha idéia e da frase que a revelava e da satisfação de tê-la encontrado.

Até o começo de junho do então ano de 1856, as cartas de Flaubert oscilam da alegria apática ao cansaço, do desespero ao encontro repentino de forças para perseverar, da repugnância ao prazer de conseguir a palavra correta para o que ele deseja dizer.

"Passo várias horas a procurar uma palavra", afirma em maio de 1852. No dia 23 do mesmo mês, sente-se "estéril como uma pedra". Mas em 18 de julho, comemora: "Quinta à noite, às duas horas da manhã, eu me deitei tão animado com meu trabalho que às três me levantei e trabalhei até o meio-dia. [...] Eu ainda sinto o gosto dessas trinta e seis horas olímpicas e fiquei contente, como na felicidade". Entretanto, passados quatro dias, se diz pronto a "recopiar, corrigir e rasurar toda a primeira parte", concluindo: "Que coisa desgraçada é a prosa! Não termina nunca; tem-se que refazer sempre". E logo depois, a 27 de julho, a constatação lapidar: "Ao escrever esse livro, eu sou como um homem que tocasse piano com bolas de chumbo sobre cada falange".

No dia 26 de outubro, afirma ter "vinte e sete páginas (quase prontas) que são o trabalho de dois grandes meses". Em janeiro de 1853, diz ter conseguido 65 páginas em cinco meses. Em abril, contando a partir de janeiro, alcança a marca de 39 páginas. E em meio à "fadiga" e à "fetidez do tema", que se alastram por todo o abril, ele lamenta: "Há três semanas que estou a escrever dez páginas! Passo dias inteiros a mudar palavras repetidas, a evitar assonâncias! E quando trabalho bem, estou menos adiantado no fim do dia do que no começo".

Todavia, ao iniciar o mês de outubro, Flaubert confidencia detestar o livro e a si mesmo:

Este livro, no ponto em que estou, me tortura de tal modo (e se eu achasse uma palavra mais forte, eu a empregaria) que eu fico às vezes doente fisicamente. Há três semanas que tenho com freqüência dores de fazer desmaiar. De outras vezes, são opressões, ou melhor, vontade de vomitar na mesa. Tudo me desgosta. Acho que hoje me teria enforcado com delícia, se o orgulho não me tivesse impedido. É certo que às vezes sou tentado a mandar tudo se foder, e a Bovary em primeiro lugar. Que santa idéia maldita eu tive em apanhar um tema semelhante! Ah! eu bem os conheci, os pavores da Arte!

Pouco antes do Natal, entretanto, às duas da madrugada, Flaubert, apesar de "fatigado com a lentidão" e de temer "o despertar, as desilusões das páginas recopiadas", é um homem seduzido pela escrita:

[...] Bem ou mal, é uma coisa deliciosa escrever, não ser mais para si mesmo, mas circular em toda a criação de que se fala. Hoje, por exemplo, homem e mulher tudo junto, um e outro amante ao mesmo tempo, eu passeei a cavalo, numa floresta, por uma tarde de outono, sob folhas amarelas, e eu era os cavalos, as folhas, o vento, as palavras que eles diziam e o sol vermelho que fazia entrecerrar as pálpebras afogadas de amor. É orgulho ou piedade, é o extravasamento néscio de uma auto-satisfação exagerada? Ou então um vago e nobre instinto de religião? Mas quando eu rumino, depois de tê-las sentido, estas alegrias, vejo-me tentado a fazer uma oração de agradecimento ao bom Deus, se eu soubesse que ele me ouviria. Que ele seja bendito por não me ter feito nascer negociante de algodão, escritor de vaudeville, homem espirituoso etc.!

Mais tarde, em 18 de abril de 1854, ele reclamará novamente: "Quando é que virá o dia bem-aventurado em que escreverei a palavra fim? Em setembro, vão fazer três anos que estou neste livro. É muito, três anos passados sobre a mesma idéia, a escrever com o mesmo estilo [...], a viver sempre com os mesmos personagens, no mesmo meio, com os flancos de encontro à mesma ilusão".

No ano seguinte, em maio de 1855, escrevendo ao amigo Louis Bouilhet, diz temer que o fim do romance pareça "acanhado, pelo menos como dimensão material". Quando setembro está prestes a terminar, trabalha "mediocremente e sem gosto ou talvez com desgosto" e se diz "verdadeiramente cansado". Finalmente, a 1º de junho de 1856, revela a Bouilhet ter enviado o manuscrito ao editor - mas só depois de suprimir "cerca de trinta páginas, sem contar nisso aí muitas linhas subtraídas", além de detalhar vários outros cortes.

Se há várias maneiras de narrar uma história, há um número quase infinito de se escrever uma biografia. Esse período de 1851 a 1856 poderia ser visto sob diversos prismas, mas prefiro pensar nesses anos torturados como uma seqüência de meses centrais na carreira do escritor, não apenas por terem resultado em Madame Bovary, mas principalmente pelas centenas de páginas jogadas no lixo, pelo número inexprimível de palavras rasuradas e frases refeitas, pelas horas de angústia e pelo gozo, ainda que efêmero, de chegar a um resultado - uma infatigável luta com as palavras.

Flaubert não estabeleceu apenas um método de trabalho. Sim, ele sabia que "todo talento de escrever não consiste senão na escolha das palavras. É a precisão que faz a força" - diz a Louise Colet, a 22 de julho de 1852. Mas não se tratou somente de disciplina. Flaubert tinha consciência das correntes que o prendiam, maiores que os seus próprios limites. Sabia que a expressão humana é claudicante, falha, imperfeita; que há um abismo separando a idéia e o discurso, a emoção e a palavra.

Em certo trecho, Flaubert conclui que "a palavra humana é como um caldeirão rachado, no qual batemos melodias próprias para fazer dançar os ursos, quando desejaríamos enternecer as estrelas". Ter a clara consciência da imperfeição, da rudeza dos meios humanos, do idioma, e ainda assim persistir, demanda mais que obediência a um método: exige obsessão, exige viver em um mórbido estado de vigilância e pesquisa, cuja primeira conseqüência é a solidão, e, logo a seguir, a visão fatal de seus semelhantes como uma horda de estúpidos e insensíveis. De fato, em 22 de abril de 1853, ele escreve: "O único meio de viver em paz é colocar-se, de um salto, acima da humanidade inteira e não ter nada em comum com ela, a não ser pelo olhar".
Permeio a sua busca obsessiva de "impessoalidade" e da originalidade no estilo, suscita um comprometimento físico do autor em sua obra:
FLAUBERT DIZIA TER VOMITADO QUANDO ESCREVEU A CENA DO ENVENENAMENTO DE MADAME BOVARY.

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